Até.


Fixei meu olhar
através do vidro sujo, fosco,
e não me vi no mesmo lugar.

Parte porque vou partir,
parte por não querer
partir você ao meio,
vida.

Mas o certo é que estou de saída.

Culpa toda
do espectro volátil
que me constitui.

Essa matéria
inconstante
em constante
mutação.

Pelo sim, pelo não,
la vou eu de novo

de mão dada com o destino
linhavando o desatino
no meu calcanhar

de Aquiles,
quem dera aquele
passamento de quimera
que outrora (mesmo espera)
me servira de caução.

Pelo sim, pelo não,
não fico.

Caio fora, passo a vez,
abdico.

Não sou do tipo
que vive em vão.

Rascunho
a lápis
o eme na mão.




Primeira Vivência

─ Quanto custou a corrida?
─ 24,50. ─ responde o taxista, que me olha desconfiado pelo retrovisor. Certamente já está habituado a levar passageiros para aquela rua estreita e escura, e sabe bem do que se trata. É noite de sábado, o calçamento da rua molhado denuncia que não foi o melhor dia na praia, mas a noite promete muita diversão. Desço a íngreme viela, que esconde, à sua direita, a discreta fachada do famoso ponto GLS de São Luis - MA ─ a boate Observatório.
Logo ao entrar, pela porta apertada que já estava aberta, me deparo com uma figura de peruca vermelha, laçarote amarelo com bolinhas azuis, maquiagem carregada, vestido de paetês e muitos badulaques: uma drag queen com quase dois metros de altura.
─ E aiiiii, meu amô? É ‘fintii’ reais o ingresso!, disse.
Vinte reais, deduzo, achando graça dos trejeitos da recepcionista. Ao lado dela estão dois rapazes bastante musculosos, com o semblante sério e camiseta preta, bem apertada, revelando que são os seguranças da casa. Verificam meus documentos e fazem sinal de okay. Tudo certo, posso entrar.
Já consigo ouvir a música do interior, que, apesar do volume muito alto, é agradável. Uma mistura de lounge com psy trance. “A melhor música da ilha”, como dizia um panfleto que olhei pela manhã.
O primeiro ambiente é marcado por uma iluminação fraca e amarela, paredes e chão de pedra, grandes arcos e elementos antigos de arquitetura (esqueci de mencionar que a boate se localiza no porão de um casarão antigo, no Centro Histórico). Vejo alguns casais que se acomodam em confortáveis sofás, dispostos por toda a sala, e presumo que ali seja o ambiente reservado ao bate-papo e namoro. Surpreendo-me ao ver somente casais “héteros”. Terei errado de boate?
Logo à minha esquerda está o bar. Três rapazes, vestindo apenas colarinho, abotoaduras e sunga preta, exibem o corpo malhado e preparam drinks com todo o malabarismo possível. São os go go boys. Olho para o relógio, 23h15min. Ainda é cedo. Consigo contar dezesseis pessoas.
─ Hoje tem Aviões, o povo só chega mais tarde, me disse um dos rapazes do balcão, referindo-se ao show de forró que acontecia naquela mesma noite.
Aproveito para conhecer o resto da boate. À minha frente encontro uma escada larga, luzes vermelhas iluminam seus cinco ou seis degraus. Estou na pista de dança. As luzes já estão ligadas e piscando freneticamente. Muita fumaça e laser verde completam o ambiente. Ninguém se arrisca a dançar sozinho. Volto para o bar, vai ser uma longa noite. Peço uma água tônica e acendo um cigarro, esperando que o público chegue logo e lote a casa noturna. A drag queen que estava na recepção chega perto do balcão e pede, com a voz bem grossa, uma água mineral.
1h26min. Um grupo de cinco rapazes chega e vai direto para o balcão. Logo, mais e mais pessoas vão chegando, até que toda a boate ganha vida e minha vinda até aqui ganha realmente sentido.
Observo muitos casais de homens, de mãos dadas e expressão de incrível alegria e liberdade, bebendo seus drinks e dançando. Quase não vejo mulheres, as poucas que encontro estão sozinhas ou em grupos com homens. Não vejo casais femininos. A boate ferve, a fila no banheiro parece crescer a cada minuto e começo a perceber muitos homens se beijando e indo em direção a uma porta, que até então eu não tinha notado.
É o Dark Room. Na tradução literal, Sala Escura. Vou discretamente caminhando na mesma direção. Aproximo-me da porta que é, na verdade, uma grade de ferro. Mais adiante tem uma grossa cortina preta, com algumas pessoas entrando e saindo. Um senhor moreno, de bigode, com uma camiseta branca e cabelos quase grisalhos controla a entrada das pessoas. Ele é uma espécie de porteiro, que fiscaliza quem está entrando com câmera digital ou celular. É terminantemente proibido fotografar ou filmar lá dentro.
Você, leitor, já deve estar desconfiando do que acontece nessa sala escura. Mas vou tentar lhe descrever tudo. Apesar de certo receio, minha curiosidade falou mais alto e não contive o impulso de entrar nessa tal sala. O porteiro me advertiu: ─ Moça, você sabe o que tem aí dentro? Mulher não costuma entrar não, é barra pesada. Aconselho que você não entre. Pode até ser perigoso. Não adianta, chego de fininho, respiro fundo e coloco a cabeça dentro da cortina.
Não consigo ver nada. O lugar faz jus ao nome. Ouço alguns cochichos e risos, mas não enxergo nadica de nada. Volto para o porteiro ─ Seu Joás, descobri mais tarde ─ e pergunto: ─ Afinal, o que rola lá dentro? Não vi nada. Com um riso sacana e meio envergonhado, ele responde: Moça, ali rola é orgia! Os homossexuais vão tudo namorar lá dentro! (Substituí os termos que ele usou por outros menos ofensivos).
Fiquei de plantão, próximo à porta, conversando aos gritos com o seu Joás ─ devemos lembrar que estou numa boate, o barulho é ensurdecedor. Vejo sair um rapaz magro, branco e de estatura média, ele tem cabelos pretos e posso notar que está usando rímel e sombra preta, apesar de vestir roupas masculinas. Está muito suado e visivelmente embriagado. Nunca o vi na vida, mas tento uma abordagem ousada, pois a curiosidade está incomodando. ─ E aí? Curtindo muito?, pergunto, e, para minha surpresa, ele responde como se fôssemos amigos íntimos: ─ E aííí, bonitona? Beijei horroreeeessss, adorooo!! (Percebo que o “E aí?” abre muitas portas). ─ E aí? O quê que rola nesse dark room? ─ repeti mais duas vezes a pergunta, até que ele entendesse. ─ Ah, amiga, rola de tudo, muito sexo, muita pegação, mas não entra não, porque se eles virem uma ‘racha’ aí dentro, são capazes é de te linchar! (gargalhadas). Convenci-me de que já sabia o suficiente sobre o Dark Room.
São 2h40 da manhã. Ao voltar para a pista de dança vejo muitos homens que tiram a camisa, exibindo músculos bem cultivados, dançam e se beijam ao som de uma versão quase irreconhecível de Gloria Gaynor. Vejo duas moças muito bonitas, uma loira, bem magra, e outra morena, de cabelos curtos, dançando em cima do balcão. Eventualmente trocam beijos e dão goles em suas long necks.
A Drag Queen do início passa perto de mim e cochicha bastante empolgada: ─ Tenho uma amiga bonitinha que está de olho em você!  Dou risada e tento explicar, mostrando a enorme aliança, que ‘minha fruta’ é outra. Ela sobe num pequeno palco, que fica à esquerda da pista de dança, a música diminui e começa um pequeno espetáculo de humor.
A Drag arranca gargalhadas e gritos da platéia, com um vocabulário escrachado e bem típico do universo gay: ─ Ai, meu edí! (...) Encontrei um bofe escândalo na Litorânea, mas a neca, ó, era minuuuúscula! (...) A bichinha pão-com-ovo andava só no truque! (...) Entre outras pérolas, que, para rir mais tarde, tive de recorrer ao Google. Ela desce do palco, aplaudida pelo público, carregada por dois go go boys e gritando “Moooorram de inveeeja!!!”  
3h45, o DJ anuncia que vai tocar a última da noite e posso ouvir um “Ahhhhh...” geral. Alguns casais começam a sair, a se despedir, a trocar telefones, a pedir a “saideira”... Ouço um rapaz falando com a amiga: ─ O babado agora é lá na Marlene’s!  
A tal Marlene’s é um bar GLS, situado na Avenida Litorânea. Muito famoso pelas atrações musicais e drinks variados.  Mas, este, é assunto para outra vivência. ■

A janela antiga,



vulto delicado
do meu contragosto.

alterego aprimorado
na sintonia
do meu aspecto:

— fechaduras
emperrando dobradiças
(doloridas e chorosas
ao menor intento)

ou de abas frouxas,
no frêmito do vento,
(remoendo o abandono
do intrometido.

SERRA - Edu Perrone


Do céus veio a massa tsunâmica
Depurando a vida
Que nunca se preservou.
E em meio ao horror,
O céu me pareceu
A ante sala do Inferno.
Os porquês eu já sabia:
Da omissão advém
O descaso eterno.

Causa e efeito bem explicados,
Ricos e pobres
Morrendo lado a lado,
E a suprema hipocrisia
Deste podre poder
Dizendo
Para quem quiser ouvir,
O que nunca quis responder:
“Foi uma fatalidade!
Amamos esta cidade,
E vocês verão o que faremos agora...”

Será mais, do mesmo sempre.
A obra tocada sem demora,
Sem estudo, nem licitação.
Vidas humanas negociadas em leilão,
Produzindo riquezas alimentadas por tristezas,
Que logo num edital sem vergonha
Trará estampado em letras colossais:
“RECONSTRUÇÃO DA CIDADE TAL,
TOMADA DE PREÇO
DE SERVIÇOS, BENS E MATERIAIS”

E logo virá o carnaval anestesiante!
E a crença de que um povo ignorante,
É , ainda, também esquecido!
Em resumo:
Estamos todos fodidos,
Pois só nos resta chorar, solidarizar,
E quitar, à vista e com desconto,
O carnê do Iptu.
Caso sobre algum troco,
Que compremos pomada
Para aliviar a porrada
De quem toma
De forma civilizada e organizada
Bem dentro
Do
Cu.

metamorfose lancinante

O pardal abocanha a borboleta
que se debate
e junta a força
obsoleta
pra se libertar

e eu aqui
onde não deveria estar.

a essa altura, no telhado,
entre a fumaça
e esse fio desencapado

coloco cacos na balança,
o esmiuçado duma vida horrível,
pessoal e intransferível
que insisto em carregar.

nunca estive totalmente pronta
pro que eu quiser,
pro que der e pro que for
sou apenas véspera,
parco espectro espectador.

precisaria de um grito,
de um saculejo
desfribilador,

o escambau,

e então um dia
eu seria o pardal.

desejo & despejo




logo hoje que quebrei
minha caneca preferida,
fui demitida, sem razão,
da minha própria vida.

mas tenho ainda
essas taças para vinho,
pero, imagine,
de contrapartida,
nenhuma garrafa se atreve.

todos os dias
eu respiro cuidadosamente
para que o ar quente e contaminado
dos meus alvéolos pumonares
não desperte-me todos os medos.

gostaria de um escape,
um escapulário,
ou de um santo forte e ilibado
que não aceite propinas e promessas
e que maquine com fervor uma prece

pra arrastar esse fardo,
desatar
esse meu nó apertado.

poema de causa e efeito


não mesmo,
eu jamais poderia saber
nem pelo jornal
nem pela revista
daquela língua devassa
e contorcionista
ou do aconchego de uma pedra
bem no meio do caminho

não saberia, não,
do seu sabor mediterrâneo
do seu desejo, instantãneo,
ou que ele toca violão

e a partir de agora,
tão somente porque não posso
e, sobretudo, porque eu quero
é que o fiz assim, tão vero,
falácia fácil de desmentir.

poema de todo dia

te entrego o teu jornal,
molhado e amassado,
e meu batom, meio borrado,
da mordida na maçã.

nesses dias, em que nada espero,
até mesmo essa tela avulsa
me preenche daquilo
que eu não quero

se ao menos já fosse noite
se ao menos já fosse, apenas,
preferiria
essa cicatriz
ao sangue mal coagulado.

economizo versos de ocasião perfeita
e idéias péssimas
e alheias
me abarrotam a cabeça,
em dias como este.

queria, ao menos, trincar esse copo
com a força da minha mente
e te deitar numa cama de palha,
com o sol pintando a parede
e te amar como, loucamente,
nunca amei sequer a mim.

Epifaníaco




Um dia
a inspiração
certamente
vai chegar

[num grande golpe
de estado
ou num galope
cavalar]

vai tecer
a sua trama
delicada
e engenhosa:

um poema,
todo verso

e um poeta,
todo prosa.

PRÓCONCEITO

(em homenagem à Argentina)







independendo do gênero:


o
casal



a
casala







pão francês




Esta moça, de repente,
vassala de um gaulês gaudério
bom-moço, tão safo,
e com um intempérico
sarrafo
trazendo atritos, colisões
e um cataclismo
—avassalador...

Je ne sais pas
quoi dire, meu amor,

não diga.
alías,
usa-me essa língua
—quase presa
de sotaque—
me afague
as ranhuras
da boca,
a particular fissura
—tão louca—
de minha parte.

e apareça
vez em quando

que cada vez
que me esquece
—inescrupulosamente—
te juro,
um poema
acontece.

tua falta e meus litorais.




Nas paragens do Recife,
a saudade arrebentava o quebra-mar.

vez e outra um ligeiro suspiro
se arremessava para contra o vento,
que estava afoito,
repleto de areia
e de meus cabelos.

sabe quantos abraços
e quantos mil beijos
te darei quando chegar?

tantos quanto
as braçadas que faltam
pra chegar aos velames
em alto mar.

chega de amor e nhen-nhen-nhen (tudo culpa do velho buk)

— bota mais dois dedos!
com a língua grossa e bêbada,
disse a puta, para o barman.
depois voltou para o seu lugar,
segurando os babados
que lhe cobriam a bunda,
tropeçou por sobre as garrafas
(qual um cão baleado)
e foi encenando
um mal ensaiado
can-
bailado

cam-
baleado



(e realmente repugnante, atinou.)

Cup world 2010

(ou "catar latinha em soccer city")


Vim aqui torcer
(o nariz)
pro verde e amarelo
que é a ultima tendência

— tenha santa paciência!

brasileiro não tem "copa",
come de pé no balcão.

mas a cada quadra de ano
põe tudo debaixo do pano:
— vai torcer pra seleção.

quando as ruas da favela
se enverdeamarelam
brasileiro que se preza
não reclama dos sopapos

nem percebe que a barriga
tá lotada de lombriga
e a goela, cheinha de sapos.

Da vovó e outras saudades

     Quando vó teresa
já estava bem velhinha
preferia ficar na sacada
que dá pro jardim.

fazia crochè
olhando a tarde, quente e amarela,
descer cheia preguiça
pelas frestas do peitoril.

no finalzinho do dia,
regava as plantas,
o chão molhado tinha um cheiro bom.
e então
vovó plantava orquídeas grisalhas
em folhas alvas
de papel Canson.

corpus christi



   feriado na cidade
plena quinta-feira
e a nação tupiniquim
inteira
sem qualquer
utilidade.
 o shopping, o dentista, a academia
ou a feira,
nada se abriu
pro feriado
generoso e mormaçado.

Só mesmo o semáforo,
aquele otário,
verdejava no batente,
enquanto eu ali,
distraidamente,
apagava o cigarro
— e o carro.

palhacinho à corda, acorde!




Não se sinta tão bem,
velho brinquedo,
pois só abri o baú
e te dei corda
pra te ver
cambalhotar.

um palhacinho,
um bobo da corte,
—o anfitrião—
do anfiteatro
particular.

portanto, não fique feliz.
e nem confabule
uma volta por cima.

(não restou aqui
nenhuma menina.)

voltará para o baú.

pois de todas as minhas bonecas
você é aquela de perna quebrada
e cabeça careca.

um curto circuito de poesia curtinha


como é que se chama
essa vontade maluca,

de ser menino,
pardal e arapuca?




romperam
os alinhavos do corte,

no entanto,
um bolero estanca o sangue,

para minha sorte.







Preocupa-te
se minha pele te apetece
e excita,

eu pareço um cristal
mas sou kriptonita.

estocolmo


Outro dia lembro de ter caminhado
—corajosamente— para a beira
da palma da tua mão

a vertigem e o mau tempo
anuviaram a rebeldia.

voltei correndo para o cerne
do teu eme
que espalmava meu mapa astral
perene
e mal traçado.

—maltratado—
por trocentas traças
famintas
de um destino
sem o menor design.

sinto meus pés tão gelados,
mas, ainda assim,
se me permitir,
fico bem na tua palma macia
até achar outra mão caridosa 
que me dê moradia.

ao capítulo





mal me lembro
que te quis,
que te quis pra vida inteira

pero hoy
és solamente


otra rima
para mí por
na prateleira.

a propósito,

a quantas ia minha louca cabecinha
a ponto de querer beijar
aquela página
encestada no lixo?

como tudo fosse novo

como fosse reciclável

uma xícara de café com muito creme
queimando a ponta da língua
numa vingança ainda quente.





das armas que vida deu
a palavra
sei bem usar

escrevo mísseis, bombas e tiros
mando por cartas ao inimigo,

mas ele, artista,
não me escreve nada.
ainda me chama de namorada
enquanto pinta e borda comigo.

em resposta





não me julgue pelo vício
--que ele é só fumaça--
aquilo que trago
ligeiramente à esquerda
tem mais viço
--e não passa.

pequenitudes



agora eu vou ser
uma taça
que se manchou
de batom

experimente
soprar-me um beijo
que eu me desmancho
em neón.

--

chorei a noite toda
como manda o figurino

e tudo mais está perdido
meus botõezinhos, tão mudos,
nem sequer me dão ouvidos

a correnteza veio forte
levando até o moinho...

--
 

uma sequóia
paralítica
assiste seu tronco
queimar

o mundo é grande
gira, gira
só não foge
do lugar

--

o dia já quase morrendo

e um tufão,
desses bem ferozes
passou correndo
no meu milharal

devastou,
deflorou as bonecas de espiga

o milharal, coitado,
plantado e perplexo
apenas soube chacoalhar-se
num aceno dolorido
e quase apaziguador

nem chorar ele consegue
pois é só milho e éter
não tem matéria prima pra compor
uma lágrima ou um verso

mas um dia vou ser poeta,
encher de chocalhos esse pé-de-vento
e pendurar-lhe nos fios de cabelo
fitinhas do santo bonfim


pois quem sabe, então,
só assim,
eu consiga a façanha, a proeza,
de mentir que é tão poesia
quanto hoje é somente tristeza.


aos tufos e saraivadas

passeiam a lápis
por toda a madrugada
os meus versos corrigíveis,
apagáveis, dedutíveis,
mudando conforme o tempo
e o humor.

conforme chove
e tudo vira lama.

são só um louco,
que procura um divã.

—um poema lamacento,
estranho,
chamando e batendo
na porta às três da manhã.


amanhecedor


 
'E eu, que antes era só toque,
me fiz por inteiro
um insone
acorde de despertador.

por hora,

improviso um taque
com um tique
nervoso e tão fraco,

que se seis badaladas tocar,

nem sequer um abalo
provoco
em teu sísmico
olho a sonhar.

Conjugações

    
          


Eu,
você,
nós

indesatáveis.


Loucura de Saturno

I

– Tem um homem pelado no meio da rua!
Era o doido da rua Enoque Mota, no município de Pastos Bons, Maranhão – os meninos gritavam e sorriam, apontando para aquele homem que praticava seu ritual vespertino, num sol pleno das três da tarde. Caminhava alguns passos enquanto balbuciava qualquer coisa e, minuciosamente, ajoelhava-se e beijava o chão poeirento, como um islamita que faz suas preces. Estava completamente nu, no seu corpo, rabiscos de caneta azul e cicatrizes de alguma surra. Saturnino aparentava seus trinta anos, era branco, alto e fisicamente magro, porém robusto. Tinha um rosto sofrido e retorcido, como que por alguma dor latente, talvez no juízo que não tinha mais. Quando espiávamos, com curiosidade e medo infantil, nossa avó fechava a janela, bradando de maneira rigorosa e constrangida:
– Passem pra dentro, meninas, ele é doido, não é coisa pra ficar olhando não! Deus tenha pena!
– Ele é doido, vó? Por que ele fica pelado? Ele não tem pai nem mãe?

II

 Todo mês de julho mamãe me mandava pra Pastos Bons. Eu e minha prima. Esperávamos ansiosas pelas férias, pelos festejos de São Bento e pelos quitutes da tia Bete. Não havia meninas na rua e nossas brincadeiras eram na poeira com os meninos. Claro, ouvindo sempre a vó Cristina ralhar conosco “num vão se sujar...‘desatrepa’ daí, menina!! Já são cinco horas, venham tomar banho pra jantar!” Por sermos meninas, os moleques viviam nos fazendo medo, dizendo:
 – O Saturnim vai pegar vocês! Ele é drogado, vai pegar vocês de noite! Cuidado com o Saturnim!
E que medo que sentíamos, quando estávamos na calçada, bastava que alguem dissesse “Lá vem o Saturnim!” que corríamos pra dentro de casa.
–Por que ele é doido, vó?
–Ele ficou doido de tanto fumar cigarro!
 “De tanto fumar cigarro”? Minha tia fumava, eu sempre ia comprar cigarro pra ela, todo dia. E se ela ficasse doida? Já pensou, andando pelada por aí... O que iam dizer? Claro, eu não era tão ingênua, sabia que ninguém ficava doido da noite pro dia, mas naquele tempo, menino pequeno não fazia pergunta, eu não conhecia qualquer fundamento psicológico. Respondiam-me o que todo mundo dizia pra menino, e eu tinha que me dar por satisfeita.

III

Muito tempo se passou e deixei de ter medo dos doidos. Alias, interessava-me, agora, por toda e qualquer loucura alheia e tinha grande curiosidade em saber qual pensamento permearia uma mente doidivanas. “Será se sabem que são doidos, meu Deus?” No verão de 2009, levei meu marido pela primeira vez em Pastos Bons, ficamos hospedados numa das casas de minha tia. Era cinco da manhã quando acordamos com alguém que chamava bem alto:
– Bete, me dá bolo! Bete, bolo, bolo! Bete! Era o Saturnino, fui até a calçada e senti um cheiro forte de excremento e urina. É que agora ele vivia confinado na pequena casa ao lado da que estávamos – por isso soava tão alto, pensei.
 – Gente, coitado! Por que deixam ele assim, trancado?
– Ele é doido, come bosta! E ta doente, tuberculose, parece. Colocaram um dreno no pulmão dele, por isso tem essa ferida aí, que não sara nunca. Mesmo assim, pra todo mundo que passa ele pede um cigarro.
Pude ver que, às sete da manhã, um homem chegou, usando máscara de respiração e botas de açougueiro
– “Dizem que é irmão dele, vem aí e joga uma sacola com resto de comida”.
O cheiro era horrível. O homem trazia, de fato, uma sacola e uma mangueira de lavar à jato. Arrastou até a calçada um colchão velho e imundo e alguns trapos, pendurou na cerca de um terreno que ficava em frente, e começou a esguichar água, lavando toda a sujeira. 
 E a família, tio Zezinho? Ninguém cuida não? Só deixam o coitado ai, sozinho, morando nessa casa suja, trancado?
– Já levaram ele pra fazer tratamento em Teresina, ele já deu muito problema, dizem que ficou doido depois que foi preso e que deram tanto na cabeça dele que ele ficou assim, perturbado. Ele é viciado em fumo, quando ele tava bom, fumava tudo o que davam pra ele. Quando ninguém dava, ele fumava qualquer coisa. Uma vez fumou as folhas tudo de um pé de laranja que tinha lá no quintal. Fumava mato, casca de pau, qualquer coisa. Não tem juízo não. Olha ali, lá está ele, pedindo um cigarro pra aquele homem...

IV

No réveillon, visitamos novamente minha tia. Moro a 600 km de Pastos Bons, mas sempre que tenho oportunidade, corro pra lá. Na primeira manhã, meu marido sentiu falta de uma coisa
– Não ouvi o nosso despertador! – falava de Saturnino, que, para a nossa surpresa, não dera um pio desde que chegamos.
– Cadê ele, vó?
– Ah, minha filha, ele agora ta que nem uma criança, só engatinhando, não fala nem nada. É a tuberculose, coitado...

No dia de ano novo, deixaram que ele saísse. Me partiu o coração ver que ele, timidamente, sentou-se na calçada, com as mãos entre as pernas e a cabeça baixa. Além da magreza, ele tinha toda a solidão do mundo nos olhos. Não era mais o doido da rua. O típico doido que resmunga as mesmas coisas, que os meninos tiram graça e ele sai correndo atrás. Não era o doido que pedia cigarro ou comida de casa em casa. Não metia mais medo no povo. Ele tava doente, definhava e todos da rua sentiam pena.
 – O que passa na tua mente? No que pensa? Quer conversar? Conversaria comigo? Que vontade de ter perguntado, tive medo que ele fosse mesmo o doido da minha infância. Mas ele não poderia, estava tão fraco, magro e triste. Precisava de ajuda, mas como?

V

Terminava janeiro e eu estava dentro da casa de Saturnino, ele estava tão magro, quase morrendo e eu lhe dizia “Não se entrega, vou te ajudar! Você vai viver, todo mundo tem uma chance”.
Eu lhe abracei e senti toda sua magreza e a aspereza de suas feridas. Suas mãos compridas e frias tocavam meus ombros e eu não sentia asco ou repulsa.
Eu lhe colocava numa cadeira de rodas, pois ele já não podia andar. Ele dizia o tempo todo “eu to morrendo, vou morrer, mas obrigado".
Acordei atordoada, não entendia o motivo do sonho. Bem cedo meu primo ligou e lhe contei tudo, inclusive para o meu marido. Ao meio dia, abri o Messenger e vi uma mensagem da minha prima deixada dez minutos atrás: “Você sabe quem morreu?” Hesitei ao perguntar, mas acabei escrevendo um receoso “Quem?”
“O Saturnim da tia Bete”.
Achei que era brincadeira de mau gosto, meu primo deveria ter lhe contado sobre meu sonho e agora tiravam sarro de mim.
– Alô, vó? Vó Cristina, como tá o Saturnino?
– Ô, minha filha, ele morreu... encontraram ele morto hoje de manhã... Deus guarde a alma dele, minha filha, ele ta melhor agora, acabou o sofrimen...
Não ouvi mais nada e desliguei o telefone num choro desesperado e infantil. Nesse dia, e somente nesse dia, fiz uma prece ao doido da rua. Por que não a fiz enquanto estava vivo?

“Para onde vai, de que serve a sensatez? O mais incrível acontece lá, e a lucidez não é necessária, pois tudo é um grande quadro surrealista. Ninguém tem sede ou frio, tosse ou desalento... Eu sei que há um céu dos doidos... Por favor, acolham ele muito bem, anjos sem juízo...”
(Saturnino)

Cegonha, ave cega, não me vê...



' é só vontade,
o pequenino coração
feito de anseio.

eu esperei
no cais das aves
toda a tarde,

porém, contudo,
outra vez
ela não veio. '



roupa suja

' o vento balança os raios de sol e as roupas secas no varal manhã maravilhosa, o cheirinho de alvejante inda me escorre nas pernas.

balanço anual.

E outro ano já me passa perguntando carrancudo: -- que tu fazes, passageira, por este fatídico mundo? Eu miro sua cara tão dura franzida em repreensão -- meu caro, sou eu que pergunto, cadê sua reputação? Passaste tão em brancas nuvens, tal qual todos anos de trás, e assim como eu algum dia, voltar tu nunquinha vai mais. Não foste um ano de glória, tampouco de revolução, que fazes do mundo agora senão só deixá-lo na mão? Tu foste um ano difícil com crise, calor e descida, Ouve os fogos de artifício? Festejam a tua partida!!!