Primeira Vivência

─ Quanto custou a corrida?
─ 24,50. ─ responde o taxista, que me olha desconfiado pelo retrovisor. Certamente já está habituado a levar passageiros para aquela rua estreita e escura, e sabe bem do que se trata. É noite de sábado, o calçamento da rua molhado denuncia que não foi o melhor dia na praia, mas a noite promete muita diversão. Desço a íngreme viela, que esconde, à sua direita, a discreta fachada do famoso ponto GLS de São Luis - MA ─ a boate Observatório.
Logo ao entrar, pela porta apertada que já estava aberta, me deparo com uma figura de peruca vermelha, laçarote amarelo com bolinhas azuis, maquiagem carregada, vestido de paetês e muitos badulaques: uma drag queen com quase dois metros de altura.
─ E aiiiii, meu amô? É ‘fintii’ reais o ingresso!, disse.
Vinte reais, deduzo, achando graça dos trejeitos da recepcionista. Ao lado dela estão dois rapazes bastante musculosos, com o semblante sério e camiseta preta, bem apertada, revelando que são os seguranças da casa. Verificam meus documentos e fazem sinal de okay. Tudo certo, posso entrar.
Já consigo ouvir a música do interior, que, apesar do volume muito alto, é agradável. Uma mistura de lounge com psy trance. “A melhor música da ilha”, como dizia um panfleto que olhei pela manhã.
O primeiro ambiente é marcado por uma iluminação fraca e amarela, paredes e chão de pedra, grandes arcos e elementos antigos de arquitetura (esqueci de mencionar que a boate se localiza no porão de um casarão antigo, no Centro Histórico). Vejo alguns casais que se acomodam em confortáveis sofás, dispostos por toda a sala, e presumo que ali seja o ambiente reservado ao bate-papo e namoro. Surpreendo-me ao ver somente casais “héteros”. Terei errado de boate?
Logo à minha esquerda está o bar. Três rapazes, vestindo apenas colarinho, abotoaduras e sunga preta, exibem o corpo malhado e preparam drinks com todo o malabarismo possível. São os go go boys. Olho para o relógio, 23h15min. Ainda é cedo. Consigo contar dezesseis pessoas.
─ Hoje tem Aviões, o povo só chega mais tarde, me disse um dos rapazes do balcão, referindo-se ao show de forró que acontecia naquela mesma noite.
Aproveito para conhecer o resto da boate. À minha frente encontro uma escada larga, luzes vermelhas iluminam seus cinco ou seis degraus. Estou na pista de dança. As luzes já estão ligadas e piscando freneticamente. Muita fumaça e laser verde completam o ambiente. Ninguém se arrisca a dançar sozinho. Volto para o bar, vai ser uma longa noite. Peço uma água tônica e acendo um cigarro, esperando que o público chegue logo e lote a casa noturna. A drag queen que estava na recepção chega perto do balcão e pede, com a voz bem grossa, uma água mineral.
1h26min. Um grupo de cinco rapazes chega e vai direto para o balcão. Logo, mais e mais pessoas vão chegando, até que toda a boate ganha vida e minha vinda até aqui ganha realmente sentido.
Observo muitos casais de homens, de mãos dadas e expressão de incrível alegria e liberdade, bebendo seus drinks e dançando. Quase não vejo mulheres, as poucas que encontro estão sozinhas ou em grupos com homens. Não vejo casais femininos. A boate ferve, a fila no banheiro parece crescer a cada minuto e começo a perceber muitos homens se beijando e indo em direção a uma porta, que até então eu não tinha notado.
É o Dark Room. Na tradução literal, Sala Escura. Vou discretamente caminhando na mesma direção. Aproximo-me da porta que é, na verdade, uma grade de ferro. Mais adiante tem uma grossa cortina preta, com algumas pessoas entrando e saindo. Um senhor moreno, de bigode, com uma camiseta branca e cabelos quase grisalhos controla a entrada das pessoas. Ele é uma espécie de porteiro, que fiscaliza quem está entrando com câmera digital ou celular. É terminantemente proibido fotografar ou filmar lá dentro.
Você, leitor, já deve estar desconfiando do que acontece nessa sala escura. Mas vou tentar lhe descrever tudo. Apesar de certo receio, minha curiosidade falou mais alto e não contive o impulso de entrar nessa tal sala. O porteiro me advertiu: ─ Moça, você sabe o que tem aí dentro? Mulher não costuma entrar não, é barra pesada. Aconselho que você não entre. Pode até ser perigoso. Não adianta, chego de fininho, respiro fundo e coloco a cabeça dentro da cortina.
Não consigo ver nada. O lugar faz jus ao nome. Ouço alguns cochichos e risos, mas não enxergo nadica de nada. Volto para o porteiro ─ Seu Joás, descobri mais tarde ─ e pergunto: ─ Afinal, o que rola lá dentro? Não vi nada. Com um riso sacana e meio envergonhado, ele responde: Moça, ali rola é orgia! Os homossexuais vão tudo namorar lá dentro! (Substituí os termos que ele usou por outros menos ofensivos).
Fiquei de plantão, próximo à porta, conversando aos gritos com o seu Joás ─ devemos lembrar que estou numa boate, o barulho é ensurdecedor. Vejo sair um rapaz magro, branco e de estatura média, ele tem cabelos pretos e posso notar que está usando rímel e sombra preta, apesar de vestir roupas masculinas. Está muito suado e visivelmente embriagado. Nunca o vi na vida, mas tento uma abordagem ousada, pois a curiosidade está incomodando. ─ E aí? Curtindo muito?, pergunto, e, para minha surpresa, ele responde como se fôssemos amigos íntimos: ─ E aííí, bonitona? Beijei horroreeeessss, adorooo!! (Percebo que o “E aí?” abre muitas portas). ─ E aí? O quê que rola nesse dark room? ─ repeti mais duas vezes a pergunta, até que ele entendesse. ─ Ah, amiga, rola de tudo, muito sexo, muita pegação, mas não entra não, porque se eles virem uma ‘racha’ aí dentro, são capazes é de te linchar! (gargalhadas). Convenci-me de que já sabia o suficiente sobre o Dark Room.
São 2h40 da manhã. Ao voltar para a pista de dança vejo muitos homens que tiram a camisa, exibindo músculos bem cultivados, dançam e se beijam ao som de uma versão quase irreconhecível de Gloria Gaynor. Vejo duas moças muito bonitas, uma loira, bem magra, e outra morena, de cabelos curtos, dançando em cima do balcão. Eventualmente trocam beijos e dão goles em suas long necks.
A Drag Queen do início passa perto de mim e cochicha bastante empolgada: ─ Tenho uma amiga bonitinha que está de olho em você!  Dou risada e tento explicar, mostrando a enorme aliança, que ‘minha fruta’ é outra. Ela sobe num pequeno palco, que fica à esquerda da pista de dança, a música diminui e começa um pequeno espetáculo de humor.
A Drag arranca gargalhadas e gritos da platéia, com um vocabulário escrachado e bem típico do universo gay: ─ Ai, meu edí! (...) Encontrei um bofe escândalo na Litorânea, mas a neca, ó, era minuuuúscula! (...) A bichinha pão-com-ovo andava só no truque! (...) Entre outras pérolas, que, para rir mais tarde, tive de recorrer ao Google. Ela desce do palco, aplaudida pelo público, carregada por dois go go boys e gritando “Moooorram de inveeeja!!!”  
3h45, o DJ anuncia que vai tocar a última da noite e posso ouvir um “Ahhhhh...” geral. Alguns casais começam a sair, a se despedir, a trocar telefones, a pedir a “saideira”... Ouço um rapaz falando com a amiga: ─ O babado agora é lá na Marlene’s!  
A tal Marlene’s é um bar GLS, situado na Avenida Litorânea. Muito famoso pelas atrações musicais e drinks variados.  Mas, este, é assunto para outra vivência. ■

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