Loucura de Saturno

I

– Tem um homem pelado no meio da rua!
Era o doido da rua Enoque Mota, no município de Pastos Bons, Maranhão – os meninos gritavam e sorriam, apontando para aquele homem que praticava seu ritual vespertino, num sol pleno das três da tarde. Caminhava alguns passos enquanto balbuciava qualquer coisa e, minuciosamente, ajoelhava-se e beijava o chão poeirento, como um islamita que faz suas preces. Estava completamente nu, no seu corpo, rabiscos de caneta azul e cicatrizes de alguma surra. Saturnino aparentava seus trinta anos, era branco, alto e fisicamente magro, porém robusto. Tinha um rosto sofrido e retorcido, como que por alguma dor latente, talvez no juízo que não tinha mais. Quando espiávamos, com curiosidade e medo infantil, nossa avó fechava a janela, bradando de maneira rigorosa e constrangida:
– Passem pra dentro, meninas, ele é doido, não é coisa pra ficar olhando não! Deus tenha pena!
– Ele é doido, vó? Por que ele fica pelado? Ele não tem pai nem mãe?

II

 Todo mês de julho mamãe me mandava pra Pastos Bons. Eu e minha prima. Esperávamos ansiosas pelas férias, pelos festejos de São Bento e pelos quitutes da tia Bete. Não havia meninas na rua e nossas brincadeiras eram na poeira com os meninos. Claro, ouvindo sempre a vó Cristina ralhar conosco “num vão se sujar...‘desatrepa’ daí, menina!! Já são cinco horas, venham tomar banho pra jantar!” Por sermos meninas, os moleques viviam nos fazendo medo, dizendo:
 – O Saturnim vai pegar vocês! Ele é drogado, vai pegar vocês de noite! Cuidado com o Saturnim!
E que medo que sentíamos, quando estávamos na calçada, bastava que alguem dissesse “Lá vem o Saturnim!” que corríamos pra dentro de casa.
–Por que ele é doido, vó?
–Ele ficou doido de tanto fumar cigarro!
 “De tanto fumar cigarro”? Minha tia fumava, eu sempre ia comprar cigarro pra ela, todo dia. E se ela ficasse doida? Já pensou, andando pelada por aí... O que iam dizer? Claro, eu não era tão ingênua, sabia que ninguém ficava doido da noite pro dia, mas naquele tempo, menino pequeno não fazia pergunta, eu não conhecia qualquer fundamento psicológico. Respondiam-me o que todo mundo dizia pra menino, e eu tinha que me dar por satisfeita.

III

Muito tempo se passou e deixei de ter medo dos doidos. Alias, interessava-me, agora, por toda e qualquer loucura alheia e tinha grande curiosidade em saber qual pensamento permearia uma mente doidivanas. “Será se sabem que são doidos, meu Deus?” No verão de 2009, levei meu marido pela primeira vez em Pastos Bons, ficamos hospedados numa das casas de minha tia. Era cinco da manhã quando acordamos com alguém que chamava bem alto:
– Bete, me dá bolo! Bete, bolo, bolo! Bete! Era o Saturnino, fui até a calçada e senti um cheiro forte de excremento e urina. É que agora ele vivia confinado na pequena casa ao lado da que estávamos – por isso soava tão alto, pensei.
 – Gente, coitado! Por que deixam ele assim, trancado?
– Ele é doido, come bosta! E ta doente, tuberculose, parece. Colocaram um dreno no pulmão dele, por isso tem essa ferida aí, que não sara nunca. Mesmo assim, pra todo mundo que passa ele pede um cigarro.
Pude ver que, às sete da manhã, um homem chegou, usando máscara de respiração e botas de açougueiro
– “Dizem que é irmão dele, vem aí e joga uma sacola com resto de comida”.
O cheiro era horrível. O homem trazia, de fato, uma sacola e uma mangueira de lavar à jato. Arrastou até a calçada um colchão velho e imundo e alguns trapos, pendurou na cerca de um terreno que ficava em frente, e começou a esguichar água, lavando toda a sujeira. 
 E a família, tio Zezinho? Ninguém cuida não? Só deixam o coitado ai, sozinho, morando nessa casa suja, trancado?
– Já levaram ele pra fazer tratamento em Teresina, ele já deu muito problema, dizem que ficou doido depois que foi preso e que deram tanto na cabeça dele que ele ficou assim, perturbado. Ele é viciado em fumo, quando ele tava bom, fumava tudo o que davam pra ele. Quando ninguém dava, ele fumava qualquer coisa. Uma vez fumou as folhas tudo de um pé de laranja que tinha lá no quintal. Fumava mato, casca de pau, qualquer coisa. Não tem juízo não. Olha ali, lá está ele, pedindo um cigarro pra aquele homem...

IV

No réveillon, visitamos novamente minha tia. Moro a 600 km de Pastos Bons, mas sempre que tenho oportunidade, corro pra lá. Na primeira manhã, meu marido sentiu falta de uma coisa
– Não ouvi o nosso despertador! – falava de Saturnino, que, para a nossa surpresa, não dera um pio desde que chegamos.
– Cadê ele, vó?
– Ah, minha filha, ele agora ta que nem uma criança, só engatinhando, não fala nem nada. É a tuberculose, coitado...

No dia de ano novo, deixaram que ele saísse. Me partiu o coração ver que ele, timidamente, sentou-se na calçada, com as mãos entre as pernas e a cabeça baixa. Além da magreza, ele tinha toda a solidão do mundo nos olhos. Não era mais o doido da rua. O típico doido que resmunga as mesmas coisas, que os meninos tiram graça e ele sai correndo atrás. Não era o doido que pedia cigarro ou comida de casa em casa. Não metia mais medo no povo. Ele tava doente, definhava e todos da rua sentiam pena.
 – O que passa na tua mente? No que pensa? Quer conversar? Conversaria comigo? Que vontade de ter perguntado, tive medo que ele fosse mesmo o doido da minha infância. Mas ele não poderia, estava tão fraco, magro e triste. Precisava de ajuda, mas como?

V

Terminava janeiro e eu estava dentro da casa de Saturnino, ele estava tão magro, quase morrendo e eu lhe dizia “Não se entrega, vou te ajudar! Você vai viver, todo mundo tem uma chance”.
Eu lhe abracei e senti toda sua magreza e a aspereza de suas feridas. Suas mãos compridas e frias tocavam meus ombros e eu não sentia asco ou repulsa.
Eu lhe colocava numa cadeira de rodas, pois ele já não podia andar. Ele dizia o tempo todo “eu to morrendo, vou morrer, mas obrigado".
Acordei atordoada, não entendia o motivo do sonho. Bem cedo meu primo ligou e lhe contei tudo, inclusive para o meu marido. Ao meio dia, abri o Messenger e vi uma mensagem da minha prima deixada dez minutos atrás: “Você sabe quem morreu?” Hesitei ao perguntar, mas acabei escrevendo um receoso “Quem?”
“O Saturnim da tia Bete”.
Achei que era brincadeira de mau gosto, meu primo deveria ter lhe contado sobre meu sonho e agora tiravam sarro de mim.
– Alô, vó? Vó Cristina, como tá o Saturnino?
– Ô, minha filha, ele morreu... encontraram ele morto hoje de manhã... Deus guarde a alma dele, minha filha, ele ta melhor agora, acabou o sofrimen...
Não ouvi mais nada e desliguei o telefone num choro desesperado e infantil. Nesse dia, e somente nesse dia, fiz uma prece ao doido da rua. Por que não a fiz enquanto estava vivo?

“Para onde vai, de que serve a sensatez? O mais incrível acontece lá, e a lucidez não é necessária, pois tudo é um grande quadro surrealista. Ninguém tem sede ou frio, tosse ou desalento... Eu sei que há um céu dos doidos... Por favor, acolham ele muito bem, anjos sem juízo...”
(Saturnino)

Nenhum comentário:

Postar um comentário